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quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

CORÉIA, UM INOCENTE BANHO DE CHUVA.

Crônica escrita por Ricardo Dimas ( Neto do Sr. Dimas Pimentel)
COREIA (UM INOCENTE BANHO DE CHUVA) Uma das diversões mais esperadas da molecada que foi minha contemporânea no início dos anos 50, quando vivi bom período em Areia Branca, eram as chuvas de janeiro, nos chamados dias de inverno e fartura. Na época, eu costumava plantar milho e feijão nos fundos da casa de meus avós maternos. Mas, numa avaliação do que era mais interessante, a plantação, as pescarias no Tirol, a cata de caranguejos nos manguezais, as eventuais caçadas com baladeira (estilingue, atiradeira), o futebol nas ruas, jogos de bola de gude, pião ou pipa (pandorga, papagaio) ficavam em segundo plano, quando o assunto eram os banhos de chuva propiciados pelas águas que escorriam dos antigos casarios e sobrados de Areia Branca. Nessas ocasiões a democracia imperava no meio da petizada. Não importava se o moleque era filho de rico, de boa família, de família pobre ou remediada. Os próprios calções eram como uniformes para todos. Eles eram de algodão e tinham elástico na cintura e um bolsinho na parte superior (lado esquerdo ou direito, não me lembro ao certo) e com um botão. Os mais sofisticados, comprados em boa loja, tinham uma proteção para as partes pudendas que mais parecia um pedaço de filó (esse que se usa como mosquiteiro em berços de criancinhas). Raras vezes vi meninas tomando banho de chuva. Lembro-me de algumas, mas eram muito pequeninas e usavam maiôs que pareciam ser ‘herança’ das irmãs mais velhas, isso quando não vinham tomar banho com longos vestidos. O interesse maior da molecada não era o banho de chuva em si, mas sim uma rara oportunidade de nos aproximarmos da zona do meretrício, em Areia Branca denominada Coreia ou Casa da Luz Encarnada (Vermelha). Até hoje pergunto-me por que essa denominação Coreia. Tivesse eu conversado com Câmara Cascudo, grande intelectual das plagas potiguares, eu teria satisfeita  2. essa minha curiosidade. A par dessas rápidas divagações, retornemos ao nosso tema. Nos dias ensolarados, um menor de idade passar perto da Coreia, nem pensar. Mas, ante os fortes aguaceiros, sem adultos nas ruas (era vexame um adulto tomar banho de chuva, ficaria ‘falado’), a molecada masculina ia, de casa em casa, testando as calhas com fortes ‘cachoeiras’ que era dali produzidas. Alguns até levavam sabonetes. Até hoje me lembro da marca mais conhecida de sabonete da época: Eucalol (será que o marketing vai gerar alguma comissão?). A explicação para isso é que essa fábrica de cosméticos incluía estampas (cartões) de brinde em seus produtos, com vários temas: história, geografia, artes etc. Atualmente, tais cartões (estampas Eucalol) são valiosíssimos itens de colecionadores. Mas, continuando, a molecada (só os meninos), de casa em casa, ia-se afastando da cidade e, de repente, chegava ao almejado objetivo: a grande construção do prostíbulo, com várias calhas e, mais importante, com muitas ‘funcionárias’ do sexo nas alegres janelas. Era uma farra para a gente miúda, em todos os sentidos. A mulherada não perdia a oportunidade para mangar (zoar, troçar) dos imberbes ‘inocentes’ (seriam mesmo?). Eis aí os diálogos de que fui testemunha: – Hei bichin, deixa eu ver sua pitinha, deixa eu torcer seu short que está encharcado. É bem ligeirinho! - Joaci, num bula com esse aí não, é filho do prefeito. O pai desse mininu é meu freguês.  – Ah, eu sei, é aquele que tem uma cicatriz bem aqui... – Muié, disfarça, o mininu é capais de comentar em casa e a muié dele é uma cobra jararaca. – Tá certo. Vou recolher essa minha língua solta e tratar bem dos meus futuros fregueses.  – Hei negrada, querem uma garapa? Para irmos nos ambientando, comíamos umas bulachas e tomávamos a tal garapa que, no Nordeste, era qualquer refresco de frutas  3. típicas do lugar: cajá, cajarana, ciriguela (seriguela), mangaba, cajá umbu, tamarindo (que nós chamávamos de tamandarina) e outras frutas menos conhecidas da parte de baixo do mapa brasileiro. Às tantas de uma certa ocasião, uma das mulheres do bordel me perguntou: - Você não é sobrinho de Miguel da Farmácia, filho de ‘Seo’ Dima? Ato contínuo, uma das outras chamadas ‘quengas’ falou: - De novo, Joaci, você e sua língua, quando tu morrê diabo, vai ser doi caixão, um só pra língua.  Aí eu, timidamente, respondi:  - Sou eu sim. Caros leitores, só vendo a cara daquela que parecia ser a ‘chefa’, a ‘fanchona’ como dizem. Eis o discurso da cafetina: - Muié, se a Marlene, a isposa de Miguel souber que ele vem aqui, ela vai acabar de entortar as pernas dele (o bicho parece um caubói) e ele vai ficar mais baixo que um anão e ói qui ele é baixim baixim. - Ora Sara, que besteira, todo mundo sabe que Miguel vem aqui e o pai também, só não falam por medo de perder os amigos ou então porque precisam comprar fiado na farmácia deles. Eles que não me deem os remédios que eu quero. A muié de Miguel, você sabe... E a do véio Dima, a Dona Maia, hein? Coitados deles. Se eu abro o bico... E ainda tem a filial do véio Dima, a tar de Biatriz. Priciso garantir meus remédios, muié. Quando nóis ficar véias, ninguém quer. Os ômi só querem nuvidade. Como não sou bobo, acalmei as ‘moças’ dizendo que jamais falaria disso, nem ao padre. Agora, péra aí: Você precisavam ver a cara delas quando falei o nome P A D R E. Foi um tal de fazer cruz com os dedos sobre os lábios fechados e sobre o peito (aliás, é bom que se diga, nenhuma delas usava blusa e fartos seios ficavam ‘ao relento’. 4. Anos mais tarde, soube que, até o padre aparecia na Coreia de quando em vez. E mais, o padre era exímio jogador de pôquer nos cassinos improvisados da casa do prefeito ou de qualquer dos jogadores, todos eles da alta sociedade areia-branquense. O certo é que prometi e cumpri promessa de não falar a ninguém o que testemunhara. Mas, agora, praticamente todos os astros e coadjuvantes do drama (ou será comédia?) já estão nos braços do Criador. Eu continuo mantendo a promessa, só não prometi que não iria redigir esta crônica. Assim... Após a chuva ter passado e ter restado apenas fraca ‘neblina’ - como os areia-branquenses denominavam o chuvisco, a garoa ou a chuva miúda – fomos ligeirinho para nossas casas e com a promessa de ficarmos de ‘bico calado’ e ‘boca de siri’ sobre o que testemunháramos, sob pena de irmos ‘arder no inferno’. Sem mentira, os diálogos das prostitutas eram sempre um videoteipe dos anteriores. No caminho de casa, deparei-me com um dos coleguinhas, o Chico Merengue e travamos o seguinte diálogo:  - E aí Chico, seu baitola, tu perdeu ômi. – Ricardo, eu mais Toinho tamo mei constipado (gripado) e mãinha num deixô a gente ir. Foi tudo bem? - Você e Toinho perderam, tomei garapa a beça, ‘lavei a égua’ e mió, a gente viu tudo, tudim, era cada peitão... Deixo por conta da imaginação de cada um a cara do Chico lamentando-se da perda do ‘inocente banho de chuva’.Gilvan Leite e Ricardo Dimas (Restaurante Linox, Rio de Janeiro, em 03/02/2020, Relembrando Areia Branca).

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