O Coronavírus e a Peste Negra
Tomislav R. Femenick – Historiador e jornalista
O Brasil e o mundo estão passando por uma fase das mais difíceis da história e o que se lê nos jornais e revistas, se vê na televisão e se ouve no rádio é um verdadeiro festival de disparate, como se todos estivéssemos de porre ou em uma ressaca homérica. Isso para não falar nas redes sociais, a terra prometida dos idiotas juramentados. Há os negativistas, os sábios que não sabem nada, os inocentes úteis e os não tão inocentes assim, que somente querem tirar proveito das benesses proporcionadas naquelas bandas de ninguém.
O coronavírus já matou quase dois milhões de pessoas no mundo todo; e está quase chegando aos 200 mil, no Brasil. Enquanto isso, em nosso país há uma verdadeira guerra inconsequente, contrária à lógica e ao bom senso, em torno das vacinas; uns defendendo umas e outros, outras. Correndo por fora, está o presidente da República, dizendo que “não está nem aí”, que não vai tomar vacina, que confia nele mesmo e outras balelas tais e quais. Surfando na onda, aparecem cientistas de araque defendendo teorias que não valem “dez tostões de mel coado”, falando de remédios para prevenções, para curas e para outros bichos estranhos. Enquanto isso, a pandemia cresce, alastra-se e atinge principalmente os mais pobres.
O mundo já assistiu a pandemias parecidas com a Covid-19. A mais famosa delas foi a Peste Negra, talvez a mais devastadora, que, no século XIV, causou a morte de 25 milhões de pessoas na Europa, cuja população total na época era algo em torno de 54 milhões. Em certas regiões, a peste matou cerca de 75% da população, provocando caos econômico e social.
Tal como o Covid-19, a Peste Negra teve origem na China. Chegou à Europa através da Rota da Seda – várias vias terrestres da Ásia que se interligavam, servindo de caminho ao comércio da seda e de outros produtos, entre o Oriente e a Europa. As mercadorias, inicialmente eram transportadas por caravanas de camelos e, depois, por embarcações que ligavam o Extremo Oriente à Europa mediterrânea. Assim, a Peste chegou ao Velho Continente através de portos da Itália, França e Espanha. Em poucos anos, a bactéria se espalhou por toda Europa, atingindo mais violentamente (além da Itália, Espanha e França) a Inglaterra, a Rússia, a Grécia, a Turquia, Portugal e países escandinavos. O pior foi que a Peste Negra teve mais duas grandes ondas. A segunda atacou a Europa Ocidental e o Mediterrâneo, ao longo dos séculos XIV a XVII, e a terceira onda entre os anos de 1855 e 1859. Retornou, como surtos, no início do século XX.
Giovanni Boccaccio, em seu livro Decamerão, descreve os horrores vividos pela população europeia naquele tempo. Ninguém conhecia a causa da doença que atingia ricos e pobres. Os ataques eram imprevisíveis. Os mortos eram empilhados no meio das ruas, nas estradas e nas portas das igrejas.
Boccaccio evidencia as sensações que as pessoas sentiam na presença do desconhecido e da própria morte, tais como tristeza, lembranças de amores infelizes, alegrias mordazes, bem como diversões, alegrias histéricas e exacerbação do cômico e do ridículo. Na sua obra ele destaca o refúgio, a fuga da realidade, a busca de uma realidade idealizada, diferente da “realidade real”.
E o que me levou à lembrança de Boccaccio e do seu Decamerão? Os ajuntamentos de pessoas sem propósito algum senão festejar. Festejar o que, Cara Pálida? Eu até compreendo a aflição dos comerciantes, vendo as contas chegarem e as suas portas sendo fechadas por decretos; dos trabalhadores sem salários porque seus patrões não têm dinheiro para pagar a folha; dos alunos e professores sem aulas presenciais e a consequente perda de qualidade do ensino, em um país com um ensino já em baixo nível. Por outro lado, eu também entendo o trabalho exaustivo dos profissionais de saúde – médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, auxiliares de enfermagem etc. – dos motoboys que fazem as entregas de produtos comprados por quem pode ficar em casa. Só não compreendo o descaso das autoridades que não querem ser pressionadas. Pressionadas por quem, pelo coronavírus?
Tribuna do Norte. Natal, 01 jan. 2021
Gilvan Rodrigues Leite (Gestor Público e Ambiental aposentado).